A oração de Doca Brandão no alto do bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro
Nem só de Academia Brasileira de Letras vive o homem! Tá escrito na bíblia!
Não é à toa que o Senhor da Criação ficou irado com os falares humanos e pôs abaixo a Torre de Babel! Surpreendeu-se o Criador com a capacidade do bípede falante de inventar palavras, desafiar a razão criadora e nomear as coisas segundo seus sentimentos, pensamentos, conveniências e paixões circunstanciais! Não supunha o Criador que aquela pobre criatura feita do barro fosse dar asas ao pensamento e ao conhecimento inundando o mundo com mares e rios de vocábulos, construindo um vasto universo de signos de linguagem, significados e significantes!
Por exemplo: a música Mulher Nova Bonita e Carinhosa Faz o Homem Gemer Sem Sentir Dor, na voz de Amelinha, foi vendida incompleta e censurada para o povo brasileiro; suprimiram a última quadrinha, que diz assim:
"Na velhice o sujeito nada faz, a não ser uma igreja que visita, mas se acaso encontrar mulher bonita ele troca Jesus por Satanás, pensa logo no tempo de rapaz, diz a ela me ame por favor, e a resposta que vem é não senhor, sua idade passou, deixe de prosa, mulher nova bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor".
E foi assim então que, dentre os inteligentes, famosos e bem afeiçoados imortais, e alguns até endinheirados e por cima da carne seca, surgiram os poetas populares, fazedores de versos do pé quebrado, falando um dialeto simples, coloquial, impregnado de bom humor, ironia e sarcasmo, contando lendas folclóricas, causos religiosos e profanos, episódios políticos e históricos, e várias outras temáticas popularescas, inclusive a Chegada de Lampião no Céu: "Foi numa Semana Santa, tava o céu em oração, São Pedro estava na porta, refazendo anotação, daqueles santos faltosos, quando chegou Lampião". (Guaipuan Vieira)
Como o poder a tudo grassa, argamassa e emassa, o sistema de produção e divisão de riqueza dividiu o país em abastados e pobres; na cultura literária essa divisão social também segue mais ou menos o mesmo diapasão, criando uma entidade de grande magnitude, ostentação e status para uns e relegando ao escanteio e à marginalidade uns tantos outros!
Da portentosa Academia Brasileira de Letras todo mundo já ouviu falar! É a famosa casa de Machado de Assis, Jorge Amado, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Lygia Fagundes Teles, João Ubaldo Ribeiro, Raquel de Queiroz, Barão do Rio Branco, José Sarney e tantos outros e outras.
Mas o que pouca gente sabe é que existe também a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, fundada em 1989 e localizada no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Presidente: Gonçalo Ferreira da Silva.
Zola Xavier, Doca Brandão e o presidente da ABLC Gonçalo Ferreira da Silva, tendo em suas mãos o Cordel Caçambada Cutuba - foto 2012 |
Janete Celano, Doca Brandão, Aparecida Costa e Gonçalo Ferreira - foto Zola Xavier 2012 |
Doca Brandão, o homem que escreveu a Caçambada Cutuba em versos, esteve lá em Santa Teresa com o jornalista e escritor Zola Xavier, prestigiando a entidade representativa dos escritores cordelistas cujos poemas são vendidos em feiras, onde ficavam à mostra da população pendurados em cordéis ou barbantes. O nordeste é o berço da Literatura de Cordel! A Academia Brasileira de Literatura de Cordel em Santa Teresa é o seu sagrado santuário! Doca Brandão subiu o morro e foi orar em decassílabo em homenagem aos poetas pobres, vadios, românticos, etílicos e libertários do Brasil!
Se lá estivesse, declamaria esse meu cordel de feira:
Cordel de feira
Fui amante da mulher de lampião
O maior cangaceiro do nordeste
Sem temer a nenhum cabra da peste
O sertão inundei de poesia
À donzela perguntei se me queria
Como noivo Ricardão em seu altar
Velejei com pirata em alto mar
Trabalhei no Egito com braçais
Enganei um cigano da Hungria
Fiz o mundo de uma lapada em só dia
E o que é que me falta fazer mais?
Quando a dor me varou o coração
Fiz mil versos de amor em bom francês
Em Lisboa conheci um português
Professor competente de Camões
Percorri todo o grande Solimões
Na corcunda de um peixe poraqué
Minha sina é exaltar toda mulher
Com os versos de Vinícius de Moraes
Namorei com Elis, Nara e Elizete
Na morada do Senhor pintei o sete
E o que é que me falta fazer mais?
Eu sustento, reafirmo e assino embaixo
Nem o capeta já obrou como eu já fiz
Um bororo entoar tango argentino
Um nazista conviver com um rabino
Fiz um cego enxergar à luz do dia
Misturei vatapá com dez mil bytes
A Rocinha com as damas da socyte
E expulsei do Congresso os imorais
Já peitei do quartel os generais
Que aplicaram aquele Golpe Militar
Toquei fogo em refresco em alto mar
E o que é que me falta fazer mais?
Com Sinatra dei um show de carimbó
Na varanda da Capela de Sixtina
Fiz amor com Carlota Joaquina
Pecadora de primeira e boazuda
Eu morei com a pobreza em lamaçais
No Senado discuti com os maiorais
Plantadores de castanha de caju
Preparei caviar com babaçu
E o que é que me falta fazer mais?
Sou matuto, admito e não renego
Um valente kamikaze do sumô
Essa manha aprendi com meu avô
Seringueiro lá pras bandas da Amazônia
Onde vi muito bicho de peçonha
Liquidar com o mais simples dos mortais
Levantei um chatô nos seringais
Me casei com a filha de Noé
Fiz o gol que não fez nosso Mané
E o que é que me falta fazer mais?
Nessa vida só me falta ser poeta
Trovador, violeiro e repentista
Ter o dom de um Otacílio Batista
Portentoso iluminado do repente
Fazer pacto com o diabo frente a frente
E acabar com os pecados capitais
Comer gente como fazem os canibais
Versejar como fez o Zé Limeira
Do Brasil remover toda a sujeita
E o que é que me falta fazer mais?
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