Resquícios do golpe de 1964 permanecem em Rondônia


Por Zola Xavier da Silveira *
 
 Nos primeiros dias após o golpe civil militar de 1º de abril de 1964, no Território Federal de Rondônia, diversas pessoas sofreram as arbitrariedades executadas pelo primeiro interventor dos golpistas, o capitão Anachreonte Gomes, como prisões, perseguições e até o afastamento sumário do prefeito interino da capital Porto Velho, o líder estudantil Carmênio Barroso. Após a sua rápida passagem pela governança do Território, Anachreonte, é tirado do governo, ocupando seu lugar  um autêntico representante dos golpistas, o Ten. Cel. José Manoel Lutz da Cunha Meneses, que governou o Território por pouco mais de um ano. 




Carmênio Barroso, ex-presidente da União Rondoniense dos Estudantes Secundaristas - URES, prefeito interino de Porto Velho, cassado em 1964, sendo entrevistado em seu ponto de resistência, a Taba do Cacique, por Zola Xavier e o escritor Antonio Serpa do Amaral - janeiro de 2008

“O interventor capitão Anachreonte me mandou prender. Fui preso de madrugada, as três horas da manhã um contingente do exercito chegou na minha casa me acordaram, se apresentaram que estavam a mandado da revolução". Após o seu afastamento da prefeitura, Carmênio funda a Taba do Cacique e segue sua vida.  "Fiquei calado, mas não fiquei mudo. A sobrevivência, a prole, o orgulho me fizeram arregaçar as mangas e deixar tudo para trás. Resta-me resgatar o que a história sepultou". Carmênio Barroso. 

Cunha Meneses teve sua passagem pelo Território, marcada pelo extremo autoritarismo,
 implantando o terror com prisões e torturas no quartel do exército,
 impondo  censura à imprensa, com prisão recorrente do jornalista Inácio Mendes, proprietário do jornal "O Combate". Em uma dessas prisões, sua esposa denunciou ao jornal carioca "Última Hora", as atrocidades sofridas pelo o seu marido, e na edição de 03. 11. 64 o jornal publicou: “ TORTURADO “Nossa Residência foi assaltada por policiais a mando do governador, que arrancaram ´portas e janelas e levaram preso o meu marido em verdadeiro atentado, configurando vandalismo e contrariando princípios democráticos”, afirma D. Irati Mendes da Silva, esposa do jornalista Inácio Mendes da Silva. Prosseguindo, denunciou as condições em que seu marido se encontrava, “meu marido está preso no quartel da 3 CIA, recolhido em xadrex infecto, incomunicável, dormindo no chão, passando fome e sofrendo torturas até que assine depoimento desmentindo notícias verídicas publicadas em O Combate". A cena, acima narrada, é típica do regime hitleristas quando fazia suas buscas nas residências a procura de seus opositores. Em Porto Velho, durante o governo do Interventor Coronel Cunha Meneses, não foi diferente. 

Em pé, de paletó escuro, o jornalista Inácio Mendes da Silva, sentados Claúdio Feitosa, Harry Covas e o ex-governador Wadih Darwich - foto cedida gentilmente pelo escritor Claudio Feitosa. 

Até mesmo, o laboratorista Luiz Mattos, histórico membro da União Democrática Nacional – UDN, agremiação partidária que apoiou o golpe militar, sofreu perseguições. Em nota, na coluna Social do Alto Madeira de 18 de julho de 64, o colunista Eurly se referiu ao laboratorista, em tom de advertência, “O político Luiz da Cruz Mattos é hoje politicamente o homem mais ativo de Porto Velho. Está em todas, e por isso o governador Cunha Meneses já deu a entender que ele é agitador”. 

Luiz Mattos, como presidente do diretório territorial da UDN, participou da preparação do golpe em Porto Velho, uma vez que chegou a convocar pelo Alto Madeira em sua edição de 26 de maio a “Marcha da Família com Deus Pela Liberdade”, no entanto foi preso no quartel do exército e, depois de sua soltura, impedido de sair de Porto Velho. Em carta aberta, fez o seguinte relato.   

 "... por capricho do destino, foi uma das maiores vítimas da revolução no Território, por golpes baixos aplicados pelos inimigos do regime, e que, com atos de pirataria usurparam o poder em nossa terra em nome da Revolução, quero manifestar aos meus amigos e ao povo em geral, o meu reconhecimento sincero e leal pelas demonstrações de solidariedades que recebi, não só durante os dias em que arbitrariamente estive encarcerado incomunicável na 3ª. Cia. de Fronteira, como também pelos atos injustificáveis do governo, quando proibiu a todas as empresas de transportes aéreos e fluviais a me venderem passagens, o que motivou eu ter que furar o bloqueio em retirada furtiva para o sul do país, para denunciar as mais altas autoridades da república, os atos de vandalismos que estavam sendo praticados no Território em nome do Ato Institucional, e que atenderam reclamos da política nefasta e corrupta dos senhores Aluízio Ferreira e Paulo Nunes Leal." Nesse trecho, Luiz Mattos,  aponta  claramente os laços desses dois coronéis, Aluízio Ferreira e Paulo Leal, velhos oligarcas, com os golpistas de 1964.

Em sua edição de 15 de maio, o mesmo jornal informou como se deu o primeiro encontro do Interventor Cunha Meneses com a imprensa local. Segue trecho: “ Sua excelência, consultada pelos jornalistas e radialistas presentes à reunião, se poderiam formular algumas perguntas, receberam respostas afirmativas, porém, que as referidas perguntas deveriam ser formuladas por escrito e ele, também, as responderia por escrito”. Cunha Meneses encerrou a coletiva dizendo: “Finalmente devo declarar de público, que com a minha formação de soldado, me considero obrigado a prestar contas da minha administração, mas de forma alguma darei satisfação dos meus atos, visto que pedí-las é prerrogativa dos meus superiores”. 

Em 19 de julho, em carta dirigida ao diretor do jornal "Alto Madeira", Cunha Meneses, enumerou alguns pontos de vista sobre o relacionamento da imprensa com o seu governo e, no ítem 4, diz o seguinte: “Há certos indivíduos que persistem em tentar tumultuar a ação do governo, fazendo críticas sem fundamento, por desconhecimento de causa ou por má fé. Para esses, o governo está atento e não hesitará em tomar qualquer medida no momento em que ultrapassem os limites admissíveis, em cada caso”. E foi desse modo que o Interventor Cunha Meneses governou o então, Território de Rondônia. 


Anísio Gorayeb Filho, durante as gravações do documentário Caçambada Cutuba - a história que Rondônia não escreveu - foto Zola Xavier 2009;

Sobre o comportamento autoritário e exibicionista do Interventor Cunha Meneses, Anísio Gorayeb Filho, no documentário Caçambada Cutuba fez o seguinte comentário: “O homem andava a cavalo e os seus ajudantes de ordens iam a pé ao seu lado, acompanhando-o até o Palácio. Isso era para impor respeito. Mas o homem era de uma autoridade assim, militarismo, ditadura, todo mundo se tremia quando o homem passava”.

Imaginem a cena do Interventor, desfilando montado a cavalo pelo centro histórico de Porto Velho, ladeado por dois homens em passos acelerados, subindo e descendo ladeiras. 
Em uma de suas andanças pelas dependências da administração pública, o Interventor chegou às oficinas da Madeira Mamoré. Uma visita, uma inspeção ou simplesmente exibição de abuso do poder? Nessa ocasião se deparou com um ferroviário com os cabelos em desalinho, o que o levou a perguntar em tom de pilhéria, se o operário não tinha pentes em sua casa, gerando um clima de horror em todo o ambiente. A partir daquele dia, esse ferroviário passou a raspar a cabeça. Foi a maneira que ele encontrou para fazer o seu protesto. Parece folclore.  Reconheço que dá margem para isso, mas essa história eu ouvi de meu velho pai, o Dió, no balcão da Drogaria Santa Terezinha. O fato ficou em silêncio, reprimido, como tantos outros atos de violência política que ocorreram na história do Território de Rondônia. 
Foi durante esse governo que se deu a ocupação pelos militares da sede da União Rondoniense dos Estudantes Secundaristas – URES, e que perdura até os dias atuais. 


Dr. Renato Clímaco Borralho de Medeiros - acervo da família

Líder da Frente Popular fez a entrega das chaves do Palacete aos estudantes 

No dia 08 de julho de 1963, portanto há sessenta anos, o governo da Frente Popular fez a doação do Palacete Rio Madeira aos estudantes de Rondônia. Naquela ocasião de entrega do imóvel, o jornal Alto Madeira assim noticiou: “Em solenidade ontem realizada, o governo do Território doou, para servir de sede da URES o próprio territorial ‘Palacete Rio Madeira’. A solenidade contou com a presença do mundo oficial, tendo à frente o governador Ary Marcos da Silva e o deputado Renato Medeiros, tendo S. Excia. feito a entrega à diretoria da URES o citado imóvel, proporcionando assim uma sede condigna aos estudantes secundários de Rondônia”. 


João Leal Lobo, ex-presidente da URES, o primeiro à esquerda - acervo da família

Vale ressaltar que o imóvel abrigou também uma representação do Centro Popular de Cultura, o CPC da UNE, organismo fundado por Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, Carlos Lyra, Leon Hirszman, Carlos Vereza, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Coutinho e tantos outros artistas e intelectuais. A representação foi instalada nas dependências da URES durante a gestão do líder estudantil João Leal Lobo, conforme nota publicada no jornal O Guaporé de 04 de dezembro de 1963. “Com expressiva rapidez, organiza-se no seio da classe estudantil de nossa terra, o Centro Popular de Cultura da *URES, iniciativa esta digna de aplausos e apoio sob todos os pontos de vista, porquanto marca um episódio de avanço da juventude e do povo, os quais serão amplamente beneficiados por este formidável veículo de intelectualização, cuja a ideia de lançamento, em Rondônia, foi do presidente João Lobo”. Lê-se: *UNE
Mais adiante o jornal trouxe a fala do presidente da URES, segue trecho: "Para nós da URES, é um orgulho abraçar esta tarefa. Sabemo-la árdua e estamos dispostos a executá-la. Desejamos salientar que contamos com todo aquele que possa nos trazer sua colaboração. A semente está lançada, nós estamos e continuaremos na luta, e toda ajuda que nos for proporcionada será bem recebida e o êxito será do povo”.
Em um artigo publicado no "O Guaporé" de 07, 12. 63, produzido nas dependências do Palacete Rio Madeira, o autor estudante Jonas Soares sai em defesa da campanha pela erradicação do analfabetismo, as Reformas de Base do governo Goulart e salienta a importância do CPC para o enfrentamento dessas tarefas, "Com a criação do CPC da URES, não somente a classe estudantil será beneficiada, mas também outras classes terão a oportunidade de tomar contato com a realidade. O Centro Popular de Cultura e a Campanha de Erradicação do Analfabetismo, são duas maneiras de nossos secundaristas desenvolverem seus talentos ocultos e auxiliarem nossos irmãos em busca de novos horizontes dentro do conhecimento humanitário."

A imprensa da época registrou diversas  atividades dos membros do CPC produzidas na sede da URES, como artigos contra o colonialismo cultural, em defesa das riquezas nacionais  e, a exemplo dos grandes centros culturais do país, com teatro de cunho libertário, levando a arte popular para os estivadores do cais e os ferroviários da Madeira Mamoré. 



O escritor José Maria Ortiz, a direita, sendo entrevistado por Antonio Serpa, quando da exibição do Trailler do documentário "Caçambada Cutuba", no Teatro Banzeiros em julho de 2009 - foto Zola Xavier
Por fim, enfatizo as palavras do nosso conterrâneo, o escritor, poeta José Maria Ortiz,  ao expressar sobre suas experiências no movimento estudantil na capital do Amazonas: “Só quem viveu a UNE sabe do seu valor. Na década de 70 participei de muitos movimentos estudantis em Manaus, como presidente da Casa do Estudante Universitário e também como um dos Secretários do DCE/AM. Anos de chumbo. O pronunciamento do ator Jorge Coutinho é encorajador e bem oportuno quando disse:  'E uma coisa que me preocupa muito é o exército estar no local dos estudantes lá em Rondônia, não pode, o exército tem que estar no quartel e os estudantes ali na URES'. 
E concluiu José Maria "O Palacete Rio Madeira realmente pertence aos estudantes.” 

Palecete Rio Madeira, localizado na confluência das ruas Dom Pedro I com Euclides da Cunha, no centro histórico da cidade de Porto Velho capital de Rondônia - foto Zola Xavier 2009
                 

                *  Jornalista
               
                -  Idealizador e produtor do documentário "Caçambada Cutuba - a história que Rondônia não escreveu" 2019
- Autor do livro "Uma Frente Popular no Oeste do Brasil" 2023, Editora Aquarius.



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