UM MENINO POETA NO CORAÇÃO DA AMAZÔNIA





Foto: Antonio Serpa do Amaral



Porque somos poetas
Por Dimis da Costa Braga
(Da Academia Rondoniense de Letras)

Em meio ao verdadeiro pandemônio que enfrentamos, muito pior que a pandemia que alguns insistem em que seja a causa da balbúrdia, sempre é bom declamar um pouco de poesia.
No contexto psicológico social propositalmente exacerbado da pandemia de Covid-19, causada pelo novo coronavírus Sars-Cov2, o mundo inteiro parece ter percebido que a poesia é mais que um luxo: tal qual nas ditaduras, torna-se indispensável, enfim, bem de primeira necessidade.
Então vamos lá, só que desta vez a poesia não é minha, trata-se de um novo poeta almejando ingressar no concorrido mercado editorial.
Mas, porque resolvi divulgar este novo poeta? Bem, para explicar isso, preciso falar um pouco dos poetas em geral, e para ingressar nesse complicado assunto, tenho que falar um pouco de mim.
Desde criança, sempre senti que escrevia porque necessitava. Sentia necessidade de expandir para além do meu eu as agruras ou mesmo a felicidade, o êxtase de momentos únicos, o sentimento de dor ou de amor e tudo mais que atormenta, alimenta, constrói ou destrói a psique do ser humano, sempre em movimento - desenvolvimento ou retração.
Não vou dizer que eu sabia disso! Eu sentia; apenas muito tempo depois fui capaz de “juntar as caixinhas” do conhecimento e do sentimento nas profundezas do cérebro e perceber cognitivamente a razão dessa necessidade.
Alguns escrevem, outros pintam, há os que tocam, cantam e os que atuam, outros compõem, há quem fotografe, quem contemple, há os que meditam; há pessoas que, não conseguindo se desligar de seus negócios um só dia na vida, apenas se satisfazem ganhando dinheiro avidamente e é só isso que lhes faz bem: estão doentes, por isso merecem respeito, também.
Enfim, no meu caso, escrever - inclusive músicas - sempre me fez sentir bem, porém jamais pensei em viver disso, em ganhar algum dinheiro com minhas poesias, minhas músicas, meus artigos científicos; não vou mentir, pensei em ganhar um pouco com livros, mas passei longe.
Pois bem. Em plena pandemia do coronavírus a internet me traz a conhecer um novo escritor e poeta, bem diferente de mim: Mateus, um menino do interior do Pará que sonha em ser poeta para ganhar dinheiro, isto é, ele pretende viver de poesia.
Não sei seu sobrenome. Sei que se trata de um poeta da vida, um poeta da sobrevivência através da luta na lida da roça de uma região carente, e com apenas 7 anos de idade.
Esse menino, morador de um Distrito da zona rural de Óbidos, a Comunidade Boa Nova, diz que quer ser poeta, sequer sabe que já o é, tampouco que o faz para garantir sua sobrevivência psicológica, como todos nós que escrevemos poesia.
Em sua poesia ele fala de sua dor e de suas carências físicas e emocionais - entre outras, não contar com um sobrenome paterno em sua certidão de nascimento -, mas também de seu orgulho em já saber ler (apesar das dificuldades que lhe foram impostas pela desigualdade social e ausência da prestação digna e completa do direito à educação pelo Estado), de sua vivência difícil que o faz sonhar com a liberdade e igualdade de direitos para si, para vestir sua mãe, discriminada e humilhada na sua comunidade, e para sua avó, pessoa com deficiência visual sem a estrutura de que necessita. O que Mateus clama é o que em direito chamamos de mínimo existencial.
A poesia de Mateus traduz um nítido pedido de socorro. Seu olhar, comovido e comovente, contempla nas letras de sua poesia toda a esperança no futuro de uma criança que ainda acredita no Brasil. Além disso, assombra sua precoce compreensão da realidade, agregada à capacidade de expor isso claramente em verso, no qual expressa o bem que deseja e sente, para si e para seus familiares - seus semelhantes, enfim.
Cito um de seus poemas. Como só tive acesso à sua declamação em vídeo, não colocarei pontuações além dos parágrafos:

“A rimar esse poema
Alfabeto eu vou usar
Pra contar a minha história
Ao povo desse lugar
Mateus é o meu nome
Escrito com a letra M
Com sete anos de idade
Já tendo a capacidade
De escrever o meu poema.
Sou filho do interior
Com muito orgulho de ser
Não tenho pai registrado
Com uma mãe do meu lado
E uma avó que me irradia
Sem ter a capacidade
De enxergar a luz do dia.
É normal que todo mundo
Tenha uma vocação
Vou me tornar um poeta
Pra alegrar seu coração
Todo dia eu peço a Deus
Saúde pra estudar
Pra seguir na vida
E minha família ajudar.”
Mateus conclui com uma estrofe que demonstra nítida compreensão da natureza humana e uma declaração de amor ao próximo que nos emociona profundamente:
“Na vida ninguém é feliz sozinho
Preciso do seu carinho
Não quero mal a ninguém
Só quero deixar saudade
No coração de alguém.”
Ao assistir aos vídeos do poeta menino Mateus, que me chegaram através de mensagens de WhatsApp enviadas por uma professora universitária - pós-doutora e ex-reitora, portanto magnificamente inebriada, tanto quanto fiquei -, pus-me a meditar, e conclui: não basta se emocionar, há que ir além, apontar caminhos e falar sobre tudo que estamos vendo: parece que o Brasil parou no tempo.
É deprimente assistir à revisão nua e crua, em verso e prosa, da desigualdade social no Brasil. É doloroso observar essa fratura exposta em plena crise institucional, exasperada por uma grave pandemia e o uso e abuso dela para tudo quanto é interesse mesquinho que se possa imaginar, desde a sonegação de informações sobre a melhor forma de proteger a vida - testar em massa e tratar precocemente com remédios que se mostraram comprovadamente eficazes até em idosos com morbidades -, má gestão com interesse só nas próximas eleições, passando pela roubalheira na aquisição de equipamentos e serviços de saúde inadequados ao enfrentamento do problema, até a manipulação da informação com a difusão do pânico por órgãos de imprensa - que até dois meses atrás estavam com a audiência quase a zero -, cuja única finalidade é realimentar as condições que permitiram as maldades antes citadas e continuar sua prática ao custo da má aplicação do dinheiro público.
Nosso maior problema não é a pandemia, mas sim, o pandemônio (conforme o dicionário: s.m. Capital imaginária dos infernos. Reunião de indivíduos para a prática do mal ou promoção de desordens. Fig. Assembleia tumultuosa. Lugar onde reina a confusão e ninguém se entende; balbúrdia).
No entanto, é reconfortante ver também que apesar de tudo, há esperança: a poesia não vai morrer.
Ainda que, superada essa fase de atraso em que o Brasil mergulhou nos últimos anos, sigamos em frente melhorando a vida do povo, haverá razões para escrever e declamar - como Mateus, expondo sentimentos de felicidade, de revolta ou de paz, sonhos e aspirações que anseia para si, para a sua família e para o país em que nasceu.
Através das letras, expandimos nossas ideias, aspirações e visões de mundo, seja de forma escrita ou falada, em verso ou em prosa, popular ou erudita, como os poetas nordestinos de cordel ou como Guimarães Rosa, quando, em carta a seu amigo João Condé que lhe pediu que lhe escrevesse nas entrelinhas do seu exemplar de Sagarana, uma explicação qualquer que pudesse explicar - com o perdão da tautologia, não há outra melhor forma de dizer isso - sobre aquele instigante monumento da literatura brasileira, arrematou (a carta merece ser lida inteira):
“Num barquinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar, inteira, no momento, minha concepção-de-mundo.”
Escrevamos ainda, portanto - e pintemos, toquemos, fotografemos, componhamos, cantemos - especialmente em contexto tão difícil como o do atual pandemônio. A arte que façamos será útil não só a nós mesmos, à nossa psique tão abalada por toda essa malversação da verdade e desequilíbrio institucional, mas a todos que necessitam contemplar, meditar e refletir, para seguir em frente, como Mateus nos faz refletir, acreditar no futuro e concluir que muito temos a fazer.
Mateus surpreende novamente quando homenageia os profissionais de saúde no contexto da pandemia, demonstrando uma consciência social e de cidadania incomum na sua idade:

“Estão vendo aquelas pessoas
Vestidas de branco ali
São todos super heróis
Não param de trabalhar
São tantas vidas humanas
Que elas tentam salvar.
Os profissionais de saúde
Podem ser chamados heróis
Pois arriscam suas vidas
Para salvar a todos nós
São heróis de carne e osso
Sem horário pra deitar
Com um simples gesto de amor
Tentam a dor curar
Causada por praga tão forte
Que o mundo quer derrotar.
Vocês tem o meu respeito
E a minha admiração
A equipe do SAMU
O copeiro e o segurança do portão
O médico e o enfermeiro
Fazendo o seu plantão
E assim honram o imposto
Pago por esta nação.”
No arremate da última estrofe, uma peroração para além de poética e contundente, filosófica:
“É preciso perceber
Que hoje o mundo parou
Que todos somos iguais
Que o dinheiro não é tudo
Se todos fizerem sua parte
Nascerá um mundo novo.”
Mateus já possui a essência do poeta. Autodidata, é um diamante a se autolapidar, e sua poesia que nada tem de infantil, nos faz perceber no meio do pandemônio, razões para poetizar, como alerta o escritor Angolano José Eduardo Agualusa - que viveu em seu país a violência da ditadura e da guerrilha -, em A noite dos jardineiros:

“E agora?” — pergunta um jovem, numa charge que corre nas redes sociais.

— “Agora vamos fazer poesia.” — Responde a mulher: “Eles odeiam poesia.”
Como sempre, a poesia se faz ver, pois nem o terror, a opressão ou a barbárie da desigualdade jamais calaram a poesia. Ao contrário: a necessidade, o sofrimento e a humilhação impulsionam o poeta que existe dentro do menino, que expande o sonho em bem ver e vestir sua mãe, para não sofrer mais humilhações, além de ajudar a avó cega.
Num mundo de invisibilidades, Mateus se fez visto. Saiu do silêncio imposto pela desigualdade determinada como noite infindável por um país cujas elites insistem numa sociedade de estamentos, em que preponderam as castas empresariais, burocráticas, militares e rurais - e a casta militar ameaça voltar a se impor sobre as demais -, para ser visto e ouvido, em alto e bom som, exigindo para si uma manhã feliz, acreditando que nenhuma noite dura para sempre.
A lição vem do meu vizinho de infância e adolescência no bairro Alvorada em Manaus, o inesquecível Alcides Werk (quem melhor traduziu em versos a essência e a grandeza - às vezes minimalista - da Amazônia) no poema Da Espera, onde pressente no alvorecer, com o adormecer das entidades sanguinárias que povoam a escuridão, a esperança:

Direi aos pássaros que esperem,
enquanto perdurar a ronda dos morcegos.
Mas, quando se avizinhar a madrugada,
exigirei
que todas as canções tecidas no silêncio
deixem o verde tímido dos bosques
e povoem de som as avenidas para que os homens se alegrem
e conheçam que o mundo é bom.”
PS. É claro que o saudoso poeta, em sua feliz metáfora, assim como esse escriba não acredita tenha o novo coronavírus advindo dos quirópteros, não se referia a essas inocentes aves noturnas.




Nota do blog: Juiz federal  desde 1999,  Dimis da Costa Braga é um autêntico amazônida. Nasceu  na cidade de Lábrea, às margens do rio Purus,  no estado do Amazonas. Formado  em direito pela Universidade Federal do Amazonas em 1991. Pós graduado em nível Lato Senso em Processo Civil, Direito Público e Direito Ambiental, Mestrado em Direito Ambiental, Doutorado em Ciência Jurídica, Professor de Direito Empresarial da Universidade do Estado do Amazonas - UEA, membro da Academia Rondoniense de Letras e Cidadão Rondoniense. Atualmente, exerce a magistratura no Tribunal Regional Federal da Primeira Região.


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