Os Sumiços



O conto “ Os Sumiços ” apareceu originalmente na edição n° 12 
(22 de setembro de 1975) do jornal Movimento.



OS SUMIÇOS

                                                         Odemir Capistrano Silva


Vivia sempre em conserto aquela avenida. Desde que me entendo como gente. Era garotinho, meu pai me levava à cidade e lá estavam os buracos, os homens trabalhando, os avisos de obras. Com os desastres, a avenida se enchia também de pequenas luminárias de sebo, quando era noite. De dia, viam-se apenas as mortalhas de jornal e alguns curiosos em volta. Deve ser por isso que me veio a ideia de contar casos misteriosos de ruas intermináveis, valas que não se fecham, coveiros abrindo sepulturas e as pessoas sumindo, desaparecendo em estranhas manchetes noticiando mortes anônimas, assassinos à solta plantando cruzes e catacumbas.
O projeto, aliás, conquanto não fosse novo, parecia-me não ter sido ainda explorado por um cineasta como Antonioni, por exemplo, diretor que eu admirava pela originalidade. E era o que eu queria ser: um escritor original. É bem verdade que partir de um evento palpável – a avenida eternamente em obras – já dava à minha história um começo de vulgaridade que me perturbava. Contudo, contentava-me com... minto. Não me contentava com coisa nenhuma. Muito menos com isso que eu não disse aí. Deus me livre de dizer!
Mas voltemos aos sumiços. Os anúncios aumentavam: os classificados ofereciam recompensa, imploravam por informações, indícios, sinais de vida. Homens, mulheres e crianças desapareciam sem explicação, enquanto a família desesperava-se sem descobrir-lhes o paradeiro entre comunicados ambíguos, pistas confusas, avisos mui breves, notas de falecimento e missas de sétimo, trigésimo dia, um ano e mais. Debalde.
Tais fatos eram cercados por uma atmosfera de conto policial. Como aquele do rapaz sem o polegar da mão direita, o André, de 16 anos incompletos, encontrado num terreno baldio sem os braços e as pernas, os cabelos chamuscados, hematomas, lesões e escoriações por todo o corpo, e apresentando ainda os órgãos genitais esmigalhados, bem como sinais incontestáveis de violação. A perícia revelou que as feridas foram produzidas por objeto contundente. Suspeita-se de que o crime tenha sido praticado por uma gangue de assaltantes de carro com quem a vítima estaria envolvida. A imprensa, entretanto, informara inicialmente se tratar de suicídio, restando saber apenas se o rapaz utilizara uma corda ou o próprio cinto. Ora, mas se assim foi, o corpo deveria ter sido encontrado com o instrumento de suplício, pois o jovem não poderia se livrar da coisa depois de finado. Salvo se alguém mexeu no cadáver antes da polícia ou que estejamos diante de um fenômeno sobrenatural, hipótese que, inclusive, começa a ser admitida com algum açodamento.
Um acontecimento dos mais discutidos nesse contexto foi o do professor Manuel Ventura, que há dois anos saiu de casa para trabalhar e nunca mais voltou. Vizinhos interrogados pela polícia asseguram terem ouvido, justamente naqueles dias do sumiço, acaloradas discussões entre ele, o professor, e sua esposa. Outros, também interrogados pela polícia, chegaram até a escutar ameaças como “qualquer hora dessas, eu vou mas é m’embora de uma vez”, versões que dona Zanir Ventura nega terminantemente. Segundo ela, o caso de seu marido é um prenúncio do fim do mundo: – Meu Manuel desapareceu por motivos que todos ignoramos, exceto Deus, Que tudo está vendo lá do alto da Sua onipotência. Pra mim é o início do Apocalipse.
Pode ser. Contudo, o que quer que tenha ocorrido compreenderá um conjunto de eventos desconcertantes que andam provocando frequentes digressões ou cortes bruscos em relatos de repórteres, estudiosos de problemas sociais, escritores, documentaristas, políticos e investigadores de polícia. Há sempre um desvio a mais, uma pista a menos no caminho para a verdade em todos os casos de desaparecimento. Inclusive com respeito a esse episódio suposto ou real que se deu − arrisco-me a usar o verbo no pretérito perfeito − com o professor Manuel Ventura. Circula pela cidade um panfleto insinuando que o professor teria sido morto durante uma reunião ilegal em que fazia acusações genéricas a pessoas que não explicita. Refere-se a um período de terror de Estado, de perseguição política e pode ser obra de um intelectual de qualquer país, pois a história registra situações assim em diferentes latitudes e longitudes, em épocas recentes e remotas. Entretanto, o próprio documento, falso ou autêntico, ignora-se, informa que se trata da transcrição do discurso de encerramento da assembléia final do 3° Congresso Metropolitano do Viver É Lutar, movimento clandestino, de inspiração comunista e cujo nome foi extraído de um verso de Gonçalves Dias. Parece que a fita foi danificada, não correspondendo o texto à íntegra da fala do orador. Mesmo assim, sou tentado a reproduzi-lo, não tanto pelo seu conteúdo, senão pela angústia que me causa saber do desaparecimento de alguém feito um papel que a gente escondeu para preservá-lo, mas esqueceu onde. Ou a prova de um crime cujo autor quer jactar-se da perfeição da sua obra enquanto debocha dos seus perseguidores. Porém um ser humano está muito além de qualquer obra humana, quem pode ocultá-lo num escaninho, num armário, numa gaveta trancada? Se, de fato, Manuel proferiu tal discurso, talvez repeti-lo propicie a algum historiador mais perspicaz levantar um ou outro véu a ocultar a verdade, ou estimule algum denodado policial a investigar um indício de delito até aqui deixado de mão por covardia, imperícia, desídia ou má-fé, quem sabe premido por circunstâncias, por ordens superiores, enfim, por motivo indefensável. Vejamos o que diz o texto.
“... (INCOMPREENSÍVEL) eles que falseiam a justiça, vilipendiam a verdade, pisoteiam as leis, condenam inocentes, perpetuam a desigualdade e perpetram os mais inomináveis atos de malvadeza que se pode conceber, sim, são eles. São eles que aniquilam a fé de cada cidadão em si mesmo, no homem e no futuro da humanidade, corrompendo a esperança pelo obscurantismo e acovardando o povo pela tirania, senhores, são. São eles que desencorajam as utopias. São eles que humilham. São eles que traem, torturam, aterrorizam. São eles que produzem as pragas, as pestes. São eles que distribuem a doença, que administram a morte. São eles que fabricam os códigos para nos amordaçar e manietar. São eles que calam os justos, que propagam mentiras, que enganam, lesam e furtam. São eles que assassinam e perseguem. São eles que inibem o pensamento e a criatividade. São eles que confiscam, que surrupiam, que ferem sem perdão. São eles que envergonham, que castigam, que agridem, que escamoteiam. São eles que inventam os sacrifícios. São eles que proíbem, que obstam, que impedem, que vedam os caminhos da felicidade buscados por todos nós. São eles que se utilizam da força, da violência e da deslealdade. São eles que arrancam os nossos olhos e quebram os nossos dentes. São eles que ensurdecem nossos ouvidos. São eles que causticam criminosamente nossas peles, que nos expõem a todos os perigos, que castram nossas ambições, que contaminam nossos intestinos, envenenando nossas veias e esclerosando nossa mocidade. São eles que enforcam, que fuzilam, que esfaqueiam, que degolam, que atropelam, que massacram. São eles que crucificam, que criam e queimam bruxas. São eles que subvertem as nossas mais puras e belas aspirações. São eles que censuram. São eles que amedrontam. São eles que geram fantasmas, demônios, inimigos. São eles que violam os sagrados princípios e os direitos inalienáveis da pessoa humana. São eles que flagelam para depois persignarem-se diante de um deus que nos impõem e de um altar feito com nosso suor e a nossa riqueza para eles usufruírem da regalia da impostura e da maldade beatificada, sim, senhores, senhoras, jovens que me ouvem neste momento nesta tribuna livre que é a rua, a praça, a esquina onde em pouco tempo nos encontrarão e nos maltratarão. Porque daqui por diante somos de fato transgressores da ordem, semeadores da discórdia, usurpadores da prerrogativa que consideram um privilégio, sim, o privilégio de ir e vir, sim. Eles nos acusam do inacusável e nos fazem confessar o inconfessável. Eles rasuram a história. Eles odeiam o novo, o belo, a liberdade. Eles abominam o carinho, o afeto, a fraternidade. Eles repelem a dúvida, execram o porém, pleiteando o adesismo, a cordialidade falsa, o silêncio servil, a boçalidade diplomada, a estupidez em lugar da sabedoria. O que eles pretendem é abafar os soluços, dominar os nervos, as mentes, as sementes, tudo. Eles, não se iludam, virão e arrancarão nossas línguas pelo pecado de nos opormos à sua hediondez com a formosura da palavra em favor da paz e da vida. Eles silenciarão nossos corações com o ratatá de suas metralhas e o bambambam de suas pistolas. Eles, eu lhes anuncio com tristeza e temor, avançam já, enquanto nos sabem cansados, machucados. E eu tenho muito medo, estou muito amedrontado, todos estamos muito amedrontados, sim, senhores, senhoras, jovens deste grande país... (INCOMPREENSÍVEL) pela ignomínia por que estamos passando... (INCOMPREENSÍVEL) Mas com a solidariedade em silêncio que ora manifestamos com o peito pleno da certeza da vitória, apesar de tudo, quando somente a minha voz e o meu discurso se fazem ouvir como a nossa vingadora algazarra, já não importa que alguns de nós tombemos. Vocês sabem (INCOMPREENSÍVEL). E que não saibam. Eles (INCOMPREENSÍVEL) bambambambambam... ratatatatatatá...”
Entrementes, surgem boatos de que o carrasco nazista Von Bronsweign não morreu e que estaria vivendo em qualquer ponto da América Latina. Ou então comenta-se o homicídio de um industrial, o contrabando de remédios, o derrame de entorpecentes na praça, o chamado “acidente” dos irmãos gêmeos atropelados na Esquina do Pavor, “o crime do dia 13” (assim conhecido porque ocorreu num dia 13 de agosto, às 13 horas de uma segunda-feira), o incêndio no Porto de Tucuí, o enforcamento de um policial na Rua do Corcunda, os ataques do Tarado Velho no Parque do Amor, o atentado à família de um jovem advogado recém-formado e, de resto, os sumiços, sempre eles, não havendo ninguém que não possua pelo menos um parente próximo ou quando nada um grande amigo na lista de desaparecidos do governo. A situação chegou ao ponto de... Bom, mas o que é que tem isso tudo a ver, afinal, com as ruas intermináveis e os buracos da avenida perenemente em conserto, corpos alumiando estradas para a morte passar? – me veio a pergunta.
A idéia, pensando um pouco, talvez agasalhasse uma dosezinha de exagero e qualquer pitada de extravagância. E creio ter sido nesse nó que me embaracei o fio da meada. Era impossível escrever a história, isto é, aqueles casos misteriosos de sumiços e assassinatos que eu queria inventar para fazer uma coisa original.

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