A BALSA QUE CRUZA DOIS RIOS

Madeira e Abunã: travessias de uma morte anunciada.


Por Zola Xavier da Silveira *

O cruzamento da Balsa  -  foto: Zola Xavier  2009


Em um sábado chuvoso de 26 de maio de 2009, rumei pela BR 364 sentido Acre para fazer, em uma mesma balsa, a travessia de dois rios, o Madeira e o Abunã.


O ponto de referência é o vilarejo Abunã, que foi o maior entreposto da produção de Borracha durante os seus dois ciclos. Ali as pelas** eram embarcadas e seguiam viagem pelos trens da Madeira Mamoré até a capital Porto Velho.
Abunã, hoje, guarda apenas os escombros dessa época. A ponte de ferro inutilizada, as locomotivas cobertas pela vegetação e outros equipamentos ferroviários, testemunhas do apogeu gomífero abandonados ao longo dos trilhos da lendária Ferrovia do Diabo. 


Escombros da lendária Estrada de Ferro Madeira Mamoré  - foto: Zola Xavier  2009

Sempre me intrigou essa estória de dois rios “paralelos”. Difícil de acreditar. Mas é isso mesmo, a balsa parte da margem direita do Rio Madeira e antes de concluir sua travessia, em sua margem esquerda recebe o Abunã. Rios  de colorações distintas: o Abunã, mais estreito, com águas claras contrastando com as do Madeira, barrentas e volumosas, apesar de ser formado pelos rios Beni e Madre Dios de águas limpidas vindas das fraldas das Cordilheiras dos Andes.

Embarque Rodônia - Acre   foto: Zola Xavier  2009

Nesta época do ano, a cada 15 minutos partem das margens dos dois rios, as balsas que ligam o estado de Rondônia ao estado do Acre. Tempo este que pode chegar até duas horas de espera para o embarque. Sua frota é composta de 3 balsas, todas com nome de mulheres, Mônica, Célia e Olívia. 
Fiz minha travessia sob uma chuva amazônica e ataques dos borrachudos, a bordo da Mônica, pilotada pelo Gilberto Araújo Barbosa, um paraense de 26 anos que há 9 anos trabalha conduzindo as Balsas, fazendo em média 16 travessias por dia, em turno de 8 horas, por um salário de R$ 911,00 mensais. Seu trabalho consiste em manobrar o barco que reboca a balsa num percurso de 800 metros. O outro tripulante é um “balseiro” de 51 anos, seu Francisco Ferreira Sobrinho, caboclo nascido nas barrancas do Abunã, que há mais de 30 anos cumpre a tarefa de acomodar os veículos na plataforma e lançar a ponta móvel da balsa sobre os acessos nas margens do Abunã e do Madeira. Para isso recebe um salário de R$ 620,00 por mês.

Gilberto Araújo  -  foto: Zola Xavier  2009

O custo da travessia varia entre R$ 10,50, para carros pequenos e R$ 99,00 para carretões de 9 eixos. São mais de 400 veículos por dia, perfazendo em média um faturamento de R$ 1 milhão e 500 mil ao mês.

São ao todo 25 funcionários  entre pilotos, balseiros e cobradores que trabalham para a empresa concessionária Rodonave Navegações. A respeito da futura construção da ponte sobre o rio Madeira esses homens ficam sabendo vagamente através dos passantes, pois nenhuma informação oficial dá conta da obra que a 300 metros rio abaixo monta seu canteiro de obras. 
O progresso passa batido por sobre seus destinos.

Seu Francisco, veterano da equipe, desabafa, “a gente fica perdido aqui, não sabe de nada, são mais de 30 anos levando e trazendo carros e no final, é como se a gente não existisse”. E Gilberto completa, “nunca chegou uma pessoa pra falar com a gente. Nem do governo, nem da empresa. Tão muito tempo falando sobre isso”. Meia hora depois a balsa encosta de volta. Salto e levo as imagens de uma morte anunciada, ficando as vítimas pra trás, presas até a última travessia, enquanto aguardam a conclusão das obras da ponte que ligará os dois estados.

A BR 364 segue até o Peru, cortando todo o estado do Acre,  são mais outras tantas Balsas pelo caminho,  com outros pilotos, outros balseiros e outros cobradores, mas todos com uma mesma história de vida. 
No dia 7 de maio de 2021 foi inaugurada a ponte ligando os dois estados.  


Jornalista
*  Idealizador e produtor do documentário " Caçambada Cutuba - a história que Rondônia não escreveu" 2019
*  Autor do livro " Uma Frente Popular no, Oeste do Brasil" Editora Aquarius - 2023

** Bolas de Borracha produzidas pelos Seringueiros





















* Jornalista
-  Idealizador e produtor do documentário "Caçambada Cutuba - a história que Rondônia não escreveu" 2019.
-  Autor do livro "Uma Frente Popular no Oeste do Brasil" 2023 - Editora Aquarius.

Comentários

  1. É tão emocionante que me dá a sensação de que eu estou nessa viagem.

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  2. Além das balsas, que devem ser desativas nos próximos meses com o término da construção da ponte sobre o rio Madeira, outra grande mudança aguardada na região é o desaparecimento da vila do Abunã, por determinação da Agência Nacional de Águas, que recalculou as áreas de proteção dos lagos das hidrelétricas depois da grande cheia do Madeira em 2014. Com isso, todas a população deverá ser remanejada do local. O impasse vem se estendendo desde então, com a contestação de Jirau, na justiça, sobre a necessidade de remanejamento dos moradores.

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  3. A Amazônia é o Planeta Água por excelência! Seus rios correm por entre sulcos da terra fazendo as vezes de pistas para o cavalgar dos barcos, rabetas, batelões e canoas beradeiras ou indígenas! Madeira e Abunã encarnam com muita altivez esse papel, atordoando o viajante com essa característica inusitada, de estarem muito próximos e paralelos, fazendo com que o incauto navegante tenha a oportunidade de cruzar dois rios numa só levada de balsa! Parabéns pela narrativa! É o Blog Guaporé Cultural mostrando para o mundo nossas matizes geográficas e culturais!

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  4. Que relato fascinante!
    "Os dois rios se encontram trazendo suas águas de colorações distintas: o Abunã, mais estreito, com águas claras contrastando com as do Madeira, barrentas e volumosas, que recebe à margem esquerda, vindos das fraldas das Cordilheiras dos Andes, o Beni e o Madre Dios."
    Mas o que mais me emocionou foi o desabafo de Seu Francisco.

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  5. O que mais me chamou a atenção foi a terrível exploração humana dos trabalhadores, que ganham entre 600 e 911 reais por mês, produzindo um lucro de 1,5 milhão ao mês: "O custo da travessia varia entre R$ 10,50, para carros pequenos e R$ 99,00 para carretões de 9 eixos. São mais de 400 veículos por dia, perfazendo em média um faturamento de R$ 1 milhão e 500 mil ao mês.
    São ao todo 25 funcionários entre pilotos, balseiros e cobradores que trabalham para a empresa concessionária Rodonave Navegações."

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