A SAGA E A PRAGA DO TENENTE FERNANDO

A SAGA E A PRAGA DO TENENTE FERNANDO

por Antônio Serpa do Amaral Filho



Os tambores de Santa Bárbara e Samburucu soaram frenéticos, alimentando o rico manjar dos rituais africanos na comemoração da vingança já prenunciada. Com a alegria transbordando a alma, os filhos e as filhas de santo bebiam marafo na cuia e dançavam em louvor às entidades, enquanto Mãe Esperança e Chica Macaxeira, em profundo transe, a tudo assistiam, compenetradas e silenciosas, impassíveis como Bruce Lee, em pleno contato espiritual com as personalidades do Reino de Oxalá.
O Tenente Fernando tivera sua praga existencial previamente anunciada, mas, arrogante que era, não deu bola, porque não cria em maus presságios metafísicos.
Sob suas ordens, e movidos por ardoroso cristianismo católico conservador, os soldados empastelaram o terreiro de umbanda, queimando os tambores, trucidando os apetrechos simples dos rituais e profanando o Congá, onde eram realizadas as oferendas a Ogum, Iansã e Iemanjá. Completamente indefesos, os pretos velhos e ialorixás tinham um rio de lágrimas escorrendo pelos canto dos olhos, os corações sobressaltados e a alma agoniada e sem luz.
As mães de santos gritavam "valei-me Santa Bárbara, minha senhora dos raios", "Valei-me Oxóssi, senhor da guerra!". As invocações, por mais oportunas e sinceras que fossem, porém, não surtiam o efeito desejado, tendo os militares tripudiado o templo, habitat transcendental dos espíritos protetores, que acompanharam os crentes negros desde África às searas tupiniquins, onde seriam escravizados.
No meio da confusão, uma preta velha teve súbita incorporação e, com o corpo retorcido pela força magnética dos orixás, anunciou a reprimenda ao impetuoso Tenente Fernando, decretada que fora a sentença no além-homem de que falava Nietzche. Disse a voz mística que o militar pagaria caro por ter profanado o Olimpo dos deuses africanos.
O tempo passou. As estações se revezaram no ritmo da vida. Chegado o verão da metade da década de 40, o Tenente Fernando, já esquecido do que fizera e da profecia das potências titânicas da natureza, acampou na mata com seus soldados, na altura do Seringal 70, do seu Raimundo Cantanhede, para uma jornada de treinamento em combate de selva. Foi quando algo tocou forte seu coração: ouviu pela primeira vez, vindo do coração da mata, o canto sedutor do pássaro uirapuru. Embevecido, dispensou a guarda pessoal e se embrenhou mato a dentro, na tentativa de conhecer a criatura autora do fantástico concerto em si bemol. Quanto mais ouvia, mais fascinado e curioso quedava o Tenente, e mais avançava para o interior da floresta tropical.
Completamente apaixonado e determinado, caminhou por mais de duas horas feito um zumbi atarantado, procurando o quilombo que naqueles sertões jamais existiu. Num curto lapso de consciência, deu por si mesmo e  viu que estava definitivamente perdido no meio da hiléia amazônica. Talvez Aluízio Ferreira mandasse resgatá-lo, talvez sim, talvez não - conjecturou. Quando pensou em debandar daquele cenário estranho para um militar carioca formado na Academia de Realengo, uma chicotada de cipó titica desabou sobre suas costas, rasgando a farda verde-oliva. Virou-se de súbito, ainda sob o ardor da lapada nos costados, e encarou um enorme Mapinguari com a chibata na mão, rindo da cara dele. Por cima das majestosas castanheiras o tempo fechou, e Iansã mandou seus raios para enfeitar o firmamento em rasga mortalha, enquanto copiosa chuva caía por entre as rajadas de vento.
Era a senha. Um enxame de umas duzentas cabas negras de grosso calibre desfechou fulminante ataque ao corpo seminu do praça, inoculando ferrão e veneno nas costas do bravo soldado da pátria mãe gentil. Todo inchado e deformado, o Tenente Fernando desandou a correr feito doido, ziguezagueando em busca da trilha perdida. Correndo como o cão corre da cruz, de um lado para o outro, desesperado, coração aos pulos querendo sair pela boca, com o inchaço estufando cada vez mais, esbarrando em árvores, troncos, cipós e gigantescas folhas de urtiga, sem se dar conta de que estava sendo dilacerado, numa desconstrução anatômica torturante. Era a bárbara vingança dos elementos do mundo natural agindo sabe-se lá a mando de quem!
E assim, como um maltrapilho moral ou um personagem da Guerra dos Farrapos em frangalhos, todo ensanguentado e em absoluto torpor, avistou um igapó poucos metros a sua frente. Pensou em atravessá-lo, porque lhe parecia menos gravoso. De fato. Em relação à mata fechada e agressiva, o alagadiço parecia um oásis. Com a água chegando pouco acima do peito, lá ia o combalido combatente do exército brasileiro, todo esfacelado, fugindo do inferno verde.
No meio da travessia, o desespero anunciou a chegada da hora agá. Lembrou da infância, da família, dos seus trabalhos na 2ª Companhia Rodoviária, dos pretos velhos, das filhas de santo e da arauta de sua desgraça. Tomou fôlego a plenos pulmões, no entanto. Foi sua última respiração aeróbica. Gentil anfitriã, Iemanjá o convidara a ter consigo no profundo das águas do viçoso igapó. Coincidentemente, num poço onde ela costumava tirar sua sesta. Cumpria-se assim a profecia do Reino de Oxalá! Nunca mais o Tenente Fernando voltou pra casa. Desafiando a perspicácia racional dos historiadores para explicar os fatos da vida, tornou-se uma lenda!
Diz a oralidade popular que o cacique político Aluízio Ferreira deixou o dito pelo não dito e dormiu muito bem naquela noite. A mulher do seu primo, o Coronel Ênio Pinheiro, todavia, nem tanto....
(*) "No dia 29 de julho de 1945, o tenente engenheiro do exército Fernando Gomes de Oliveira desapareceu nas selvas da região, logo depois de sair para caçar um inambu em companhia de dois outros militares que se encontravam no acampamento. O tenente Fernando nunca mais foi visto, apesar de todas as buscas. O sumiço gerou uma série imensa de pistas e versões, mas sem qualquer resultado final. O uso político do desaparecimento é uma questão que ainda levanta paixões, 74 anos depois" - Lúcio Albuquerque

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