RENATO MEDEIROS - LIDERANÇA POPULAR DO TERRITÓRIO DE RONDÔNIA

Por Zola Xavier da Silveira *


Rápidas palavras, por ocasião do centésimo décimo segundo aniversário da pessoa que foi o Dr. Renato Clímaco Borralho de Medeiros.

Negro, médico, músico, amante do futebol e socialista. Nascido em 30 de março de 1912 na cidade de Belém do Pará. Dr. Renato Medeiros formou-se na Faculdade Federal do Pará; teve uma juventude ativa, envolvida com a sociedade de sua época, preenchida pelos estudos, o violino e o futebol. Chegou a participar dos quadros do extinto Clube Julio Cesar, da segunda divisão do futebol paraense. Com seu violino percorreu a vida boêmia e cultural de Belém, tocando nos cabarés, nas festas de amigos e nas salas de projeção no tempo do cinema mudo.


Dr. Renato Medeiros e sua esposa Dona Lygia Medeiros   foto **


A convite de seu colega de medicina e de música, Dr. Rubens Brito, chegou a Porto Velho em 13 de junho de 1942, a bordo de um Catalina, com sua esposa dona Lygia Medeiros e seu filho Raimundo.  Logo foi trabalhar na Estrada de Ferro Madeira Mamoré;  em janeiro de 2008, Dona Lygia  em entrevista concedida a esse escriba, que teve o prazer de contar com a participação  de Anísio Gorayeb Filho e Antônio Serpa do Amaral Filho, recordou esse tempo: “O Rubens Brito que era cunhado do Aluízio Ferreira, convidou a gente e aí viemos. Chegando aqui, Renato foi trabalhar na Madeira Mamoré, percorrendo a ferrovia de litorina, medicando os trabalhadores. Cada mês ia um médico. Gostozinho andar de litorina, ia sempre com ele, mas para passear e ficava em Guajará - Mirim na casa de uma amiga”.


Dona Lygia Medeiros, sendo entrevistada por mim na sua residência em Porto Velho - RO foto Antonio Serpa do Amaral - 2008. 

Sua atividade se estendeu também para o Hospital São José e seu consultório particular. Atendia a todos os que batiam a sua porta, na grande maioria das vezes sem cobrar, como afirmou dona Lygia: “Atendia e de graça. Ele andava num JEEP velho pelos bairros visitando as pessoas”.

O Soldado da Borracha, Sr. Anastácio Gomes, nos revelou, em depoimento raríssimo, suas andanças com o médico:  “Eu conheci o Dr. Renato, andando com ele a pé na primeira colônia que foi aberta aqui em Porto Velho, ele receitando gente e eu aplicando injeção, não tenho uma formação de enfermagem, mas tinha a curiosidade. Ele ia de casa em casa, de barraco em barraco, passando por cima de pau pelo varadouro, cruzando os igarapés por dentro d’água, eu com a caixa de medicamentos nas costas e ele com os aparelhos de pressão, aquela coisa toda. Era um grande amigo meu, eu gostava do Dr. Renato. Um grande médico”.

Dr. Renato Medeiros entrou na política para presidir no Território Federal do Guaporé, o Partido Social Progressista – PSP, sigla que abrigou a Frente Popular. Na sua primeira disputa eleitoral, veio como suplente de Joaquim Vicente Rondon, na chapa do PSP para o pleito de 03 de outubro de 1950. Na época, o Território do Guaporé tinha direito a apenas uma cadeira na Câmara do Deputados;  a eleição  era composta de dois pleitos independentes, entre titulares e suplentes.  Em Porto Velho, Renato Medeiros conquistou sua primeira vitória em pleitos eleitorais. Como suplente, venceu seu adversário do PTB, o agrônomo Edgar Cordeiro, por uma margem de 252 votos. Com esse resultado histórico Renato consagrou-se como a liderança popular no seio da oposição.  Nessa mesma eleição, Aluizio Ferreira foi eleito Deputado federal por uma diferença de 108 votos em todo o Território.



Primeira direção do PSP - Partido Social Progressista Senados Jose Antonio, Renato Medeiros, Arnaldo Batista, Ananias Andrade e Laudelino Pereira da Silva, sendo este o Guarda Territorial filiado nº 1 - foto **

Na eleição seguinte, em outubro de 1954, a Frente Popular conquistou a sua primeira vitória no Território. O pleito foi precedido por inúmeras violências, arbitrariedades e farsas engendradas  no Palácio Getúlio Vargas, sede do governo do Território do Guaporé.  Numa manobra que visava afastá-lo da disputa eleitoral, Renato Medeiros foi preso sob a alegação de ser o principal articulador da criação da República Socialista do Guaporé.   Levado sob varas à Belém do Pará, pelo Delegado de Polícia de Porto Velho Dr. Franco Martyres, sendo entregue ao comandante da 8ª RM. Absolvido, Renato Medeiros voltou ao Guaporé para, novamente, ser o destaque no resultado eleitoral, obtendo como suplente, a mesma quantidade de votos que o vencedor Joaquim Vicente Rondon.


Prisão de Renato Medeiros de óculos - jornal Folha do Norte 


Com a vitória do PSP seu nome é cogitado pelos seus correligionários, para ocupar a Secretaria Geral do Território, cargo que correspondia à vice - governador.  A reação de seus adversários  alcançou  projeção nacional. O jornal O Globo,  de 22 de março de 1955, em seu editorial, o qualificou como uma temeridade para o Brasil: “Indiscutivelmente, nomear Secretário Geral do Guaporé um comunista seria o mesmo que pôr a disposição dos vermelhos um grande pedaço do Brasil e, sobretudo, facilitar a infiltração no país dos elementos Bolchevistas que ora se acham na Bolívia. O trabalho para que aquele secretário de imprensa e propaganda do extinto Partido Comunista chegue a ocupar o importante cargo, vem sendo desenvolvido, ao que se afirma, pelo atual deputado Joaquim Vicente Rondon, o qual aliás deve a sua eleição para a Câmara ao Sr. Medeiros, que empregou na propaganda da sua candidatura a técnica comunista de ilaquear a boa fé das classes mais modestas”. Por  tudo isso, seu nome não emplacou.



Dr. Renato Medeiros ao centro - foto **


Em abril de 55, Renato Medeiros foi indicado para prefeito de Porto Velho,  permanecendo no cargo até 14 de outubro de 56, quando foi substituído e, então, retomou as suas atividades como médico.

Com o pedido de licença de Joaquim Rondon, em agosto de 57, Renato Medeiros  assume, pela primeira vez,  a vaga de representante do Território do Guaporé na Câmara dos Deputados.

Em 1958 são quatro os postulantes a uma única cadeira na Câmara dos Deputados: Eduardo Colares, pelo Partido Libertador, Araújo Lima, pela Coligação UDN/PTN,  Aluizio Ferreira, pela Coligação PSD/PTB e Renato Medeiros, pelo PSP tendo como seu suplente, o socialista Thomáz Chaquian. Com o fracionamento dos oposicionistas, Aluizio Ferreira, venceu as eleições por uma margem de pouco mais de  400 votos.

A vitória da Frente Popular  veio com sangue nas ruas.

Em outubro de 62, Renato Medeiros saiu para sua última disputa eleitoral. Foi uma candidatura alicerçada no movimento popular, contando com o apoio de todos os sindicatos de trabalhadores, muitos dos quais foram fundados com a sua participação. A União Rondoniense dos Estudantes Secundaristas – URES, que tinha Carmênio Barroso na presidência, apoiou ativamente a  candidatura da Frente Popular. Pela primeira vez, Renato Medeiros recebeu o apoio dos Castiel. A professora Marise Castiel, que exercia forte liderança no professorado,  esteve na organização da campanha, junto com figuras de proa da Frente Popular,  entre elas Wadih Darwich,  diretor proprietário do jornal A Folha de Rondônia, veículo de fundamental importância na campanha, em sua sede, localizada na rua Barão do Rio Branco,  Renato Medeiros mantinha seu quartel general.

A Vitória anunciada a cada esquina, gerou um ar temerário para a segurança individual dos principais membros da campanha. Na noite de 26 de setembro de 1962, o comício de encerramento da campanha terminou em tragédia, com dezenas de feridos e alguns mortos, quando uma caçamba da prefeitura de Porto Velho, dirigida por um servidor municipal, avançou por sobre a multidão.

Sua atuação na Câmara dos Deputados, sempre esteve ao lado do presidente João Goulart e de Leonel Brizola, defendendo as Reformas de Base, entre elas a Reforma Agrária e o Controle das Remessas de Lucros das Multinacionais, e que foram encaminhadas pelo presidente da República ao Congresso Nacional, dois dias depois do histórico comício realizado na Central do Brasil no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964.

Jornal Alto Madeira 


Um ano e seis meses depois de sua eleição,  o golpe civil militar de 1º de abril de 1964, encerrou sua carreira política, iniciada na juventude  quando ainda tocava  violino nas salas de cinema mudo de Belém.

 

O Último Ato

 

Em 16 de junho Renato Medeiros ocupou a tribuna da Câmara dos Deputados pela última vez, fazendo o discurso  de sua despedida. Segue na íntegra:

 “Sr. Presidente, por uma coincidência interessante, ontem, dia em que foi cassado o meu mandato, completava eu 22 anos que havia chegado ao Território de Rondônia, como médico da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Foram  22 anos de lutas políticas que fui obrigado a enfrentar, porque,  sem falsa modéstia, tornei-me, naquele Território, um líder popular. E, tive a oportunidade de confrontar-me com os donos da terra no Território de Rondônia. Eram eles coronéis do Exército Brasileiro:  o Sr. Coronel Aluízio Pinheiro Ferreira (1)  e o Sr. Coronel Paulo Nunes Leal.(2) 

Eu, um simples médico do quadro do Território Federal de Rondônia, tive que enfrentar a corrupção, a ladroeira naquela região e o fiz com todo o ardor da mocidade com que ali cheguei. Lá me nasceram os filhos e os netos. E agora, é com tristeza que vejo que toda esta luta foi perdida, porque a corrupção me venceu. O Sr. Coronel Paulo Nunes Leal, que me enfrentou por diversas vezes nas urnas, não me conseguindo vencer nenhuma vez, pois em todos fui vencedor, conseguiu agora, com esta Revolução, satisfazer a sua vaidade, exigindo, segundo me informaram do Comando Revolucionário, a cassação do meu mandato, a suspensão dos meus direitos políticos, porque assim ele sabe que poderá talvez, eleger-se mais tarde Deputado pelo Território de Rondônia. Não sei se conseguirá, porque eu confio no povo, que saberá distinguir os bons dos maus.

Minha palavra aqui é somente uma palavra de agradecimento aos meus colegas, a todos que me distinguiram com a sua amizade, e para dizer que tenho uma religião – sou espírita – que me recomenda “ não persigas os maus. Deixa que a vida os ensine.”

E é o que espero, Sr. Presidente”.


Jornal Alto Madeira

Afinal, qual o crime cometido pelo deputado Renato Medeiros?

Não foi arrolado em nenhum inquérito onde ele pudesse ser enquadrado em algum delito contra o erário público, foi sim, punido severamente pelos seus ideais, ao lado dos parlamentares progressistas que   defenderam o governo do presidente João Goulart, deposto pelos militares.  

O jornal Alto Madeira, em edição de 21 de junho de 64, na sua tradicional coluna “Alto Madeira na Rua”, trouxe o seguinte comentário sobre a cassação dos direitos políticos por dez anos do deputado federal Dr. Renato Medeiros, segue trecho:

 “Contra o ex-deputado de Rondônia não se ofereceram, até agora, outras restrições senão as de caráter ideológico, ao contrário de tantos outros seus companheiros de partido, o seu nome ainda não apareceu envolvido, com prova provada, em negociatas, nem mesmo se apresentaram evidências” Renato Medeiros, além de sua cassação, foi demitido do serviço público.

Exiliado dentro do seu próprio país, Renato não voltou para Porto Velho. Buscou abrigo na cidade de Jacareí - SP, onde abriu consultório particular e trabalhou na Santa Casa de Misericódia, tendo recebido ajuda de seu amigo proprietário da fabrica dos fogos Caramuru localizada naquela cidade.

Dr. Renato Medeiros, ao longo de sua trajetória política no Território de Rondônia, além das inúmeras infâmias, arbitrariedades e injustiças, sofreu com as manifestações racistas, veiculadas pelo jornal O Guaporé, porta voz do pensamento aluizista que, sistematicamente, o chamava de “ Louro “. 

No final de sua vida regressou a Porto Velho, vivendo afastado das atividades políticas, embora recebesse frequentemente, em sua residência, seus amigos leais. Pouco tempo depois, acometido de doença, voltou a Belém, sua terra natal e lá faleceu no dia 08 de novembro de 1986. Segundo depoimento de Dona Lygia Medeiros, “Quando Renato adoeceu, vendi tudo que tinha de vender, minhas jóias, para tratar dele, do enterro e tudo”. 

(1)  Gvernador do Território Federal do Guaporé - 1943 até 1946.

(2)  Governador do Território Federal de Rondônia em dois mandatos - Setembro de 1954 até abril de 1955 e de novembro de 1958 a março de 1961.

 

* Jornalista

-  Idealizador e produtor do documentário " Caçambada Cutuba - a história que Rondônia não escreveu"

-  Autor do livro " Uma Frente Popular no Oeste do Brasil " Editora Aquarius - 2023. 

** Fotos cedidas gentilmente pela família.

Fontes:

Alto Madeira

Diário do Congresso Nacional

Folha do Norte

O Guaporé

O Globo

 

 

 

 





Comentários

  1. Renato Medeiros, médico negro e socialista, é uma figura cuja trajetória merece toda atenção. Parabéns pelo texto excelente e relevante, bem como pela iniciativa do blog!

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    1. Meu caro amigo,prof. da UNIFESP, doutor Denilson, sua avaliação é da maior importância para o meu trabalho. Um grande abraço.

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  2. Dr. Denilson, seu comentário enaltece a trajetória de meu avô! Difícil somente quando a família assim o faz, pois perde -se no tempo! Personagens como o senhor, Zola, Anísio Gorayeb, entre outros dão respaldo e credibilidade a este resgate, tão necessário em minha modesta opinião! Muito obrigado! Renato Medeiros vive!

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  3. Parabéns pela iniciativa de pesquisar e escrever sobre a história de Rondônia, mostrando aspectos e nuances inéditos da política regional.

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  4. Grande iniciativa Zola. Meus parabéns!

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. BLZ de trabalho, Zola.
    Renato Medeiros, o médico humanista que dava sentido à sua vida colocando conhecimento e boa vontade a serviço do combate intenso e solidário à dor e ao sofrimento dos seringueiros, beradeiros, garimpeiros e de todos os 'eiros' abandonados à própria sorte em ambiente de pobreza e miséria, nos confins da floresta amazônica. Esse sentido de amor e de solidariedade ao próximo que impulsionava aquele médico, na narrativa mentirosa da elite da Madeira-Mamoré, foi desqualificado para demonizar um adversário político difícil de ser vencido nas urnas; o comportamento humanitário do médico foi denunciado como uma ameaça à 'democracia' no Brasil, porque, na malévola manipulação de Roberto Marinho, não passava de uma "técnica comunista" de enganar e iludir a boa-fé dos pobres, das viúvas e dos órfãos... Mais alarmante ainda: executava-se em Rondônia uma estratégia política para abrir espaço ao avanço das hostes comunistas que desceriam das Cordilheiras dos Andes para ocupar o País....
    Talvez esse editorial de O Globo tenha sido tomado pelos golpistas de 1° de abril de 64 como fundamento à decisão que escolheu a administração do Território de Rondônia para ser ocupada por oficiais do Exército, não das outras forças.
    Faz muito tempo - desde o trabalhismo de Getúlio Vargas - que a Globo vem criando um mundo de mentiras na cabeça do brasileiro. À Globo e à mídia que a replica deve ser imputada a responsabilidade pelos gravíssimos erros de visão e de escolhas que têm cometido as autoridades brasileiras nas suas decisões de governança e, no geral, o povo nas suas escolhas de urna.

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  7. Médico, líder da coligação de centro-esquerda, presidente do Partido Social Progressista e comandante-em-chefe dos peles-curtas – grupo que fazia oposição cerrada ao maior cacique político de todos os tempos em Rondônia, o coronel Aluízio Pinheiro Ferreira – Renato encarnava naquele momento a esperança da gente simples, dos desvalidos, ferroviários, desempregados, empregados do comércio e dos que tinha se decepcionado com os mandos e desmandos do chamado “pessoal do Aluízio”, os cutubas, que por anos a fio detiveram a hegemonia política no território federal.
    Parabéns ao Zola pela iniciativa!

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  8. Como sempre um primor de documentário. Zola é um apaixonado pela nossa história. Fico feliz de saber que continua na caminhada. Parabéns camarada.

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